Palavralgia

It must have been love but it’s over now. Esta foi a trilha sonora enquanto estava ao volante hoje pela manhã. Fiquei com o “chicletinho” grudado. Durante todo o percurso, a musiquinha rescindia, sem consentimento prévio, em meu pensamento. Quando percebia, lá estava eu... it must have been love ...

Isso demonstra o pouquíssimo controle que detemos sobre o próprio pensamento.

A insistência da música, independente da minha vontade, me fez recordar de um amor da adolescência, um amor platônico, marcante que, now is over (muuuuito over), mas que foi amor, como o que diz a música da dupla sueca Roxette.

O “chicletinho”, de alguma forma, mexeu comigo. Não por conta de um saudosismo romântico, mas por deslocar de alguma profundeza recôndita um sentimento submerso e trazê-lo à tona. Esta lembrança apresenta-se encharcada, líquida, como tudo a nossa volta. Aquele amor importante da adolescência, há muito diluído como uma gota de tinta que cai num balde d’água, teve a sua concretude, o seu momento. Da mesma forma, o Império Romano, com toda a sua força conquistadora, também os faraós do antigo Egito, autoproclamados deuses vivos, e assim todas as coisas. Tudo tem a sua glória, sua importância, para depois se diluir.

Setenta e um por cento da superfície do nosso planeta é coberta de água. O corpo humano é fluido com sessenta e cinco por cento de líquido. Muitas vezes estamos literalmente mergulhados no alto índice de umidade do ar. A nossa fluidez é muito mais concreta que a concretude da nossa existência. Nós somos líquidos, vivemos num meio fluido e nele nos diluímos.

Nada é permanente. De alguma maneira, esta máxima chega a ser consoladora, principalmente quando relacionada à realidade política e econômica em que vivemos.

Tudo escorre por entre os dedos, mesmo quando temos a certeza de segurarmos algo com firmeza nas mãos.

Eu me pergunto o que restou daquela paixão nem tão pueril assim. E a resposta é: a memória, mas só quando algum dispositivo, como esta música, a aciona. Contudo, a lembrança guarda um grande distanciamento daquilo que foi vivido. Até a memória vem dispersada, dissolvida, fragmentada, como respingos e o sentimento que ela traz é completamente diferente daquele da experiência vivida. Enquanto estamos conectados a todos os meandros, detalhes, nuanças e tonalidades dos tecidos da história, tudo tem uma coloração. Quando nos voltam à memória, muitas vezes, as cores estão diferentes, por vezes esvanecidas. O distanciamento do que nos parecia concreto dissipa esta concretude e nos traz amadurecimento, como o de uma manga amarelinha que despenca lá dos píncaros da árvore para cumprir o seu destino na dura realidade do chão.

Em vez de um Super-Homem, talvez alguma super entidade das águas possa nos restituir a glória, mas isso somente é possível na memória, que tem sua natureza fluida. Ao ser tocada, contamina, molha tudo em volta, mas depois evapora. Esbarrar numa lembrança é como molhar os pés numa fina lâmina de água e ter acesso a tudo que ali está contido.

Enquanto estamos vivendo a situação, tudo nos parece tão imprescindível, tão insubstituível, tão vital, ainda mais quando se trata de paixão. Mas quando passa, muitas vezes não queremos nem lembrar, frequentemente nos achamos até ridículos. Por outro lado, tem gente que nunca supera. Imagina, se não conseguimos controlar nem uma musiquinha que insiste em povoar nosso pensamento, quanto mais dominar um sentimento tão forte. Outros, no entanto, passam por uma, duas, muitas paixões e seguem o fluxo, diluindo estas situações no tempo, enquanto armazenam seus resíduos em alguma caixinha pouco acessada da lembrança.

Não apenas o curso da história se modifica, nós também nos transformamos. E, num dia qualquer, alguma coisa esbarra sem querer na caixinha há muito esquecida – uma musiquinha chiclete, por exemplo – fazendo com que seu conteúdo se derrame e impregne todo o ambiente mental com aquele perfume antigo e ultrapassado, para depois evaporar no ar, mas não sem antes acordar sentimentos e sensações adormecidos, que fazem o coração disparar.

Num primeiro momento, são os sentimentos que despertam fazendo com que fiquemos inebriados, suspensos, descolados da realidade atual. Em seguida, vem a profunda reflexão de como tudo passou, como um rio, são águas passadas. Por último, restam uns destroços boiando em torno de nós durante todo o dia. De vez em quando, trombamos com alguns deles, o que nos dá a sensação de estarmos com um pé no passado e outro no presente. Mas até a renitente música “chicletinho” que impera absoluta em nosso pensamento por longos momentos, como um imponente faraó, vai escorrendo, se esvaindo... e o ritmo continua... It must have been good but I lost it somehow... It’s where the water flows... até evaporar completamente.

Palavralgia


Se você tem um pouco de tempo e um punhado de tristeza,
Reserve uma parte do tempo e,
À outra porção, adicione a tristeza.
Misture bem, até virar uma massa quase homogênea.
Depois espalhe sobre uma folha em branco e
Deixe fermentar.
Então olhe bem para ela.
Vai crescer, depois murchar.
Use o restante do tempo
para ver a tristeza passar.
Palavralgia

 

National Geographic Brasil

Nada é para já... infelizmente.

No futuro, talvez, escafandristas de outras civilizações lancem um olhar de piedade sobre a nossa, por considerarem muito pueris registros de crenças atuais que encontrarão submersos. É possível que esses rabiscos rupestres, desenhados nas paredes da nossa cavernosa atualidade, ajudem arqueólogos de civilizações futuras a encontrarem um caminho menos tortuoso.

Eu me questiono frequentemente a respeito do olhar que hoje jogamos sobre as crenças das civilizações antigas em seus deuses, e me pergunto, ainda,  sobre a diferença entre este olhar atual e o dos indivíduos crentes daquela época.

Atualmente, muitos se perguntam por que aqueles serem humanos faziam gravuras nas rochas das grutas onde habitavam. Os homens das cavernas, como testemunham as inscrições arqueológicas em diversos sítios pelo mundo afora, possivelmente atribuíam poder mágico aos desenhos que faziam nas paredes. A aquisição desse poder talvez fosse uma das motivações para serem feitos os desenhos rupestres que encontramos até hoje. Tal magia girava, na maioria das vezes, em torno da caça. Eles acreditavam que, se pintassem mãos em volta do desenho de um bisão, por exemplo, as chances de fracasso na captura do animal seriam quase inexistentes. Creio que os seres ancestrais que habitam em nós ainda adotam essa prática de alguma forma. Sim, quando realizamos algum tipo de ritual para lograrmos um intento.

Já a civilização egípcia antiga tinha convicção na duração eterna da matéria, o que hoje nos causa até uma certa impressão de infantilidade, não é verdade? Como é que aquelas pessoas construíam túmulos e pirâmides colossais repletos de alas, câmaras e galerias labirínticas para levarem consigo seus pertences após a morte? Estes monumentos, ainda hoje, comprovam esta incrível realidade. 

Os gregos, por sua vez, criam no Olimpo, com seus deuses cheios de sentimentos e características humanas. 

Da mesma forma, os romanos aceitavam como real a existência de inúmeros deuses que decidiam, a seu bel-prazer, sobre a vida dos pobres mortais que pululavam sobre a Terra. 

Muitos povos da antiguidade praticavam rituais mágicos e cruéis para agradar e receber favores particulares dos deuses. Não há nada de comicidade neste fato, nem naqueles tempos recuados e nem nos atuais, em que os tenebrosos desejos de “deuses” sequiosos continuam sendo saciados em escambos escusos. 

Os indígenas, até hoje, acreditam na influência dos deuses sobre a chuva, a guerra e a prosperidade dentre outras coisas. 

Este tema me traz uma profunda reflexão acerca das crenças da atualidade. Em que cremos nós? E qual a relação que se estabelece entre os processos mentais dos povos antigos e dos atuais? 

As nossas convicções são algo muito particular, é claro, e não me refiro somente à religião e questões existenciais, mas também, às informações cotidianas que nos bombardeiam incessantemente. Volto a perguntar: em que cremos nós? E como tratamos as notícias que nos chegam? 

Quem somos neste rito de magia e encantamento, os encantadores ou os encantados, os bisões ou as mãos que desejam pegá-los, como nos desenhos das paredes pré-históricas? 

Desde o Paleolítico, período de aparecimento das pinturas rupestres, até hoje, muito se evoluiu. Alguns acreditam que já estamos vivendo em Terra 2. Eu penso que já estamos habitando Terra 3, porém ainda nos deparamos todos os dias com indivíduos que precisam, por exemplo, pegar um ônibus para ir ao Banco e enfrentar fila para receber o pagamento, por não conseguirem lidar com cartões, computadores, celulares e toda a parafernália tecnológica, sem falar nos novos padrões comportamentais, trabalhistas e familiares dentre outras questões peculiares à Terra 3. Estas pessoas estão presas na caverna do seu mundo, como os personagens daquele conhecido desenho animado, A Caverna do Dragão. Elas não conseguem sair de jeito nenhum. Os escafandristas investigarão as práticas e o modus vivendi das pessoas que ficaram presas para sempre nestas cavernas, assim como nós, hoje, pesquisamos a vida e os costumes das que viveram nas grutas do período Paleolítico. 

Também não é raro nos depararmos com seres consciencialmente pré-históricos andando por aí. Estes, sim, habitantes da, há muito superada, Terra 1, ainda estão em suas grutas particulares, presos, limitados, sem conseguirem ver a luz, como descrito na Alegoria da Caverna, de Platão, e, mais recentemente, no Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. 

De acordo com a teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, o avanço se dá por meio de um processo seletivo natural em que sobreviverão aqueles que possuírem maior capacidade de adaptação a novas situações.

Por isso, é preciso que saiamos das nossas obscuras cavernas a caminho da luz. Precisamos nos adaptar ao ambiente iluminado pela nossa própria capacidade de discernimento e compreensão da realidade. E isso só é possível através da expansão mental, da reflexão, do exame minucioso das nossas próprias crenças, assim como das informações que nos seduzem todos os dias, da mesma forma que os primeiros donos da nossa terra eram seduzidos com espelhinhos e colares de miçangas. 

Muitas das nossas crenças atuais chegam a ser muito cômicas, de tão infantilizadas, o que certamente despertará piedade nos futurísticos escafandristas que se compadecerão ao verem onde, após milênios, permanecemos mergulhados.
Palavralgia

Este ano, o Blog Plavralgia completa sua 12ª Primavera. Atingiu a pré-adolescência. Parece que foi ontem que comecei a postar minhas histórias. Alguns textos, antes de virarem livro, foram publicados aqui. Foi neste Blog que meus livros nasceram, por esta razão o mantenho "vivo". 

É interessante "passear" pelos anos e observar, através dos escritos, os temas de cada época. Ele é um importante registro sobre o meu trabalho com a escrita, que sempre foi para mim uma forma de desabafo e a minha melhor forma de expressão. No Blog, podem ser encontrados ensaios, crônicas e poesias, que espelham o meu eu mais profundo e as minhas reflexões sobre temas cotidianos. Por isso, dou tanta importância a este trabalho que considero uma extensão da minha casa mental. 

Assim, celebro estes 12 anos, que refletem tantos outros debruçada sobre o papel em branco onde desmancho questionamentos, dores e sentimentos em palavras.

Palavralgia
Desenho de Pietro Morando
Vastos são os campos de batalha e os inimigos se multiplicam em nós. São milhares de feras, seres monstruosos e selvagens. Todos muito mais fortes e poderosos e todos espectros de nós mesmos.

São eles que habitam o mundo que deveria ser só nosso e tudo por nossa culpa, porque não conseguimos contê-los e acabamos soltando os bichos que ameaçam a paz do mundo.

As guerras do mundo são aterrorizantes, mas muito mais terríveis que as guerras que vitimam milhares de pessoas mundo afora, são as guerras íntimas que travamos conosco mesmos, porque são elas que fazem existir as guerras do mundo.

Parecemos soldados sem treinamento numa guerra muito grave, em que o massacre parece inevitável.

As lutas são infinitas e, muitas vezes, concomitantes. É preciso exterminar os monstros que se erigem gigantescos dentro de nós, para vencermos as guerras do mundo.

Estes monstros ferem, machucam, devoram, deglutem e nos excretam sem nos digerir.

Normalmente, essa é a nossa condição: a de dejeto dos monstros que não conseguimos vencer em nós mesmos, aí eles fazem o que querem de nós.

Isto tudo porque não lançamos mão das poderosas armas de que dispomos e, ignorantes, não montamos uma vigorosa estratégia de combate a essas feras vorazes e implacáveis que nos consomem por dentro e por fora.

Combalidos, sucumbimos a todas as batalhas, transformando-nos em território conquistado pelos seres alienígenas que sustentamos.

É imperioso dominar essas bestas para vencer as guerras do mundo. É preciso lutar para não sermos devorados. Só assim, superaremos a pobre condição de dejetos para conquistarmos a nobre condição de combatentes.

Precisamos deixar de existir como excreção dos monstros, desprezada e abandonada pelas próprias bestas, que pisoteiam seus próprios restos e se materializam em cada esquina, tirando a paz e o sossego do mundo.

Todos estes monstros vivem em nós e se alimentam do nosso plácido comodismo. Fazem de nós seres assustados, medrosos, acuados, vencidos. Vencem fácil, fácil a guerra que não acabará nunca se não dissermos para nós mesmos: - Basta!

Talvez, nunca consigamos extinguir totalmente estas feras em nós. Mas, quem sabe, não possamos domá-las, domesticá-las, para podermos sair de casa mais tranqüilos? Pode ser que, impetuosas, elas até queiram se desprender ao se deparar, aqui e ali, com outras feras, quando dirigimos nosso carro, por exemplo, mas, quem sabe, já não seja possível contê-las?

É possível que, com pequenas medidas, teremos dado grandes passos para deixarmos de ser presas fáceis, vitimadas pelas feras que, freqüentemente, deixamos escapar da nossa batalha íntima para contribuir fortemente na guerra do mundo.

Cada um sabe as feras que cativa e, com certeza, cada um saberá a melhor forma de aplacar a sua voracidade e selvageria pois, como diz o poeta, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

O domador dorme e as feras ficam à solta. Dorme pesado enquanto vive o pesadelo.

E aqui estou eu querendo assumir a minha parcela de culpa e acordar deste interminável sonho ruim.

Portanto, domemos as nossas feras e monstros particulares. Engulamos nós os sapos, as cobras e os lagartos, antes de sermos engolidos. Excretemo-los para que não haja guerra nos mundos interiores e exteriores a nós.

Não parece incoerente soltarmos os bichos no mundo e depois sairmos gritando por paz?

Assim somos nós, seres cheios de contradições, que se explodem e se espalham pelo mundo feito o gás carbônico que nos sufoca e nos faz adoecer, enquanto fingimos que nem é conosco.

Se evitássemos estas explosões, talvez inibíssemos as emissões deste gás letal que transforma o mundo em ambiente apropriado para feras.

E assim, vamos transformando o mundo e tornando o ar irrespirável com as nossas explosões, começando dentro da nossa própria casa e culminando com as explosões das guerras que tornarão o nosso mundo um lugar perfeito para abrigar somente seres monstruosos.

As feras vivem em nós e são viciadas em gás carbônico. É preciso oxigenar nossos cérebros e para isso é necessário tornar o nosso ar respirável, começando pela nossa própria casa. Só assim daremos cabo, em nós mesmos, das feras viciadas que fazem existir as guerras do mundo.

Precisamos renovar nossas energias para acabar com as guerras do mundo e deixarmos, definitivamente, de viver num mundo de guerras.


16/07/2009
Palavralgia

Como diz Stephen King, no final desta página, utilizar metáforas, fazendo conexão entre coisas sem relação entre si, é uma forma de enriquecer o texto. 

Eu me identifiquei muito com isso. Embora não seja fã do gênero a que o autor se dedica, encontrei algo em comum: acho que utilizamos a mesma tal caixa de ferramenta a que ele se refere no livro Sobre a Escrita, guardadas as proporções das habilidades de cada escritor em utilizá-las.

 Adoro fazer isso nos meus escritos. E um exemplo é o texto Tudo que Move é Sagrado, escrito nos idos de 2015. Segue abaixo.

Tudo que Move é Sagrado

Às vezes somos assaltados por ideias que a gente não sabe ao certo por que nos vêm à mente.

Pois é. Dia desses fui acometida por uma imagem de escola de samba. Veio-me à cabeça uma fantasia de uma das alas da escola. A fantasia era uma só para todos os componentes da ala, ou seja, era uma vestimenta para todos os participantes entrarem nela. Parecia um imenso lençol com vários buracos por onde os integrantes metiam a cabeça. O efeito era bonito, mas limitava um pouco os movimentos dos foliões.

Agora me lembro do motivo de esta imagem me ter vindo à cabeça. O pensamento funciona de forma encadeada, isto é, uma ideia puxa a outra, que remete à outra e à outra e assim sucessivamente, até que quem está pensando se pergunte: “mas por que é mesmo que estou pensando nisso?”

Foi desta forma que a fantasia carnavalesca chegou até a minha tela mental. Uma bela imagem televisiva que trouxe todo um ciclo de encadeamento de ideias anteriores até exumar, lá do fundo, esta imagem há muito esquecida em algum recôndito escaninho da memória.

Façamos a reconstituição do circuito para chegar à sua gênese. Sempre demoro um pouco a pegar no sono. Enquanto ele não chega, minha mente vagueia e eu pensava em como às vezes é difícil nos libertarmos de uma situação, de passarmos adiante, de mudarmos de fase, como nos jogos de vídeo game. Parece que ficamos engessados. Tudo se repetindo todos os dias, até as falas parecem as mesmas. É como se entrássemos numa espécie de automatismo monótono e extenuante do qual precisamos nos desligar. Muitas vezes nos vemos presos, sem saída, a um emprego do qual desejamos ardentemente soltar as amarras, a um relacionamento que há muito já perdeu o prazo de validade. Situações a que nos vemos atados sem conseguirmos nos desprender.

De repente, um convite, uma decisão, um encontro casual, um remexer em coisas velhas faz circular as energias e dá uma reviravolta que tudo aquilo que estava estagnado se movimenta.

Quer ver uma coisa danada para fazer circular energia? Faxina. Se algo estiver emperrado em sua vida, experimenta levantar poeira, arrumar armário, mexer em coisas velhas, descartar o que entulha e ocupa espaço. Parece que ao desorganizarmos para organizar no plano material, no plano astral as energias também são removidas de seus devidos lugares formando novas configurações. Tudo se renova, se transforma. Esta é uma teoria minha. É quando mudamos de fase. Aí dizemos: “estou numa nova fase em minha vida!” E isto sempre é muito bom, até que as coisas vão tomando seus lugares, se assentando, acomodando e se estagnando novamente. Hora de empreender nova subida na montanha.

Tudo é movimento. É preciso nos alforriarmos daquilo que nos escraviza, aprisiona, engessa e que somente mantemos em nossa vida por puro comodismo ou porque esperamos que algum milagre aconteça. Assim, nós mesmos nos acorrentamos a situações, relacionamentos, condições profissionais, desejando que algo de novo aconteça. Desta forma, parece que somos nós os integrantes daquela ala da escola de samba, cuja imagem me veio à mente. Dezenas de bonequinhos indistintos, só com a cabecinha para o lado de fora, presos uns aos outros por um tênue tecido que lhes tolhe os movimentos e limita a evolução.

Não raro, gastamos muito tempo na vida pensando: “como é que eu vou sair dessa?” A gente perde noites e noites de sono e não encontra a solução!

Mas, como tudo é movimento, tudo é cíclico, tudo passa, quando nos damos conta, a fantasia já é outra, já mudamos de ala, já passamos de fase.

Às vezes, é preciso mesmo aguardar que o destino se cumpra. Contudo, é imperioso lembrar que “tudo que move é sagrado”. Por isso é importante este movimento de trocar de fantasia, de “remover as montanhas com todo cuidado” e de abrir as janelas para nos alimentarmos de horizontes.
Palavralgia

Estou lendo Sobre a Escrita – A Arte em Memórias, do Stephen King. Eu também me espantei porque, afinal, este autor escreve romances de terror. Sim! Contudo, fui surpreendida com uma obra deliciosa, meio autobiográfica, em que King fala não apenas sobre seus processos de criação, mas, dentre outras coisas muito interessantes, dá importantes dicas sobre a produção textual.

No decorrer do livro, o autor menciona que é preciso saber sobre o que se está escrevendo e que a escrita deve vir do coração e mexer com as emoções do próprio escritor em primeiro lugar. Ao ler isto, meu coração acelerou porque me fez lembrar do quanto escrever “A Arca” me tocou. É um dos textos de que mais gosto e talvez seja o que mais me emocione. Até hoje, quando leio esta crônica, escrita em 2010, fico comovida. Por isso, escolhi esta pérola, da minha lavra, para compartilhar hoje.

Fique à vontade para deixar suas impressões. 


A ARCA

A minha casa caiu, desmoronou por inteiro. Não foi tempestade, nem vendaval, caiu por abalo nas estruturas antigas. Eu caminho pelos escombros buscando alguma coisa de valor, mas nada aqui parece passível de salvação.

Lembro-me, então, de quando brincava de casinha sobre o frio cimento do chão do corredor que separava as minhas duas casas. Na casinha da brincadeira não havia corredor. Na casa de dormir, não tinha geladeira. No fogão, só poeira e no forno as aranhas construíam suas próprias casas. Escoradas na pia da cozinha, duas bicicletas enferrujadas. Em frente a pia, uma grande arca de madeira clara. Dentro dela, um bule amarelo com tampa preta e seis xicrinhas arredondadas, uma delas sem asa. O bule também era povoado. Em meio à louça, dentro do móvel, uma imensidade de livros intocados. Sobre a arca, a vitrola cor de abóbora e algumas imemoráveis quinquilharias. O tesouro da arca era a vitrola e os livros intocados que, até então, serviam de abrigo e alimento às traças. Os livros são passíveis de salvação. Eles me iniciaram na poesia. O tesouro da arca me abria o universo, me fazia imensa e sem temor de conviver com os seres alienígenas àquele mundo. Na verdade, eu era o ser estranho àquele universo povoado por traças, aranhas, baratas entre louças e livros, muitos livros.

Certa tarde, sentei no chão empoeirado da cozinha e puxei lá do fundo da arca um livro grosso de capa branca. Abri o livro, retirei as traças, moradoras antigas daquela página e descobri uma palavra: agropecuária. Foi a primeira vez que vi esta palavra, ela invadiu meu universo, como eu invadi a arca com as louças e livros que constituíam o mundo pacífico dos insetos. Folheei o livro que continha vários mapas com legendas riscadinhas.

Jamais pensei em limpar e organizar aquele mundo. Acho que com isso aprendi um pouco a lidar com as inconveniências e com as coisas que incomodam. Cresci sem medo de baratas e com a certeza de que não é possível viver num mundo perfeito. Mesmo assim, o mundo é passível de salvação. Os livros da arca me resgatam lá do fundo dos escombros.

Ainda guardo algumas palavras do antigo poema que encontrei em um dos livros da arca do tesouro: “ao perder-te eu a ti, perdemos tu e eu...”, não me recordo a autoria, mas os versos propiciam profundas reflexões sobre perda, destruição e transformação. Somente agora entre os escombros, encontro o traçado que orienta os habitantes a respeito do local que habitam. Isso não consta de nenhum mapa. É entre proteção e abandono que construo a minha casinha de brinquedo no frio corredor que separa as minhas moradias. Tudo é ganho.

A casa de dormir era menor que a casa de comer e só o quarto funcionava, todo o resto ficava entregue às traças, aranhas, baratas e à minha infinita curiosidade. Eu e todos aqueles não tão amigáveis insetos éramos os habitantes daquele mundo.

Na casa de comer, o principal habitante era o sol, ficava do outro lado do corredor. Era para lá que eu ia todos os dias tomar o café da manhã. A casa de comer era grande, tinha jardim e o fogão, a geladeira e tudo mais funcionavam perfeitamente. Os insetos, se aparecessem por lá, eram realmente considerados intrusos, caçados e sacrificados, coitados! Na casa de comer não havia lugar para abandono. À tarde, era na cozinha empoeirada da casa de dormir que eu me encontrava, explorando os objetos da arca e os livros empoeirados e corroídos. Eu conversava com os insetos. As traças e as aranhas diziam muito sobre aquele mundo que eu virava e revirava. Cada tarde, uma descoberta, não sobre o abandono.

A casa de dormir era noturna até durante o dia, o silêncio morava nela, mesmo quando eu estava explorando a arca, em cima da qual, ao lado da vitrola cor de abóbora, havia um pequeno altar improvisado. De manhã bem cedinho, quando eu ainda estava na cama, ouvia reza sussurrada.

Nas tardes que não ia explorar a arca, eu brincava no jardim da casa de comer ou de casinha no corredor que separava as duas casas. Não sei, ao certo, à qual das duas pertenço. É nos escombros que encontro poesia. Há muitas histórias no abandono e nas coisas sem uso. Assim eu penso observando o bule amarelo de tampa preta que nunca foi usado e divide espaço com os insetos e com os livros na arca. Ali também está o altar. Eu olho para ele curiosa, mas não toco em nada e ele também não me toca. É dentro da arca que está o meu tesouro. São os livros corroídos que contam a minha história e a história que quero contar.

Muitas vezes pensei em como seria ver o bule amarelo sobre a mesa do café da manhã, rodeado por suas xícaras arredondadas e pelo açucareiro bojudo. O que seria das aranhas que moravam lá? Onde encontrariam nova moradia? O café na casa de comer também só era servido em xícaras quando tinha visita especial, mas não no jogo do bule amarelo, ninguém se lembrava dele. Sorte das aranhas.

Tudo desabou e eu nem percebi, quando dei por mim, já estava revirando os destroços na tentativa de encontrar alguma coisa que se salvasse. Eu também faço parte das ruínas, mas o que pode ser salvo não está em parte alguma, muito mais próximo, porém, do que se possa imaginar.